Sinceros

Confusões, esperanças, sonhos, ambições. Todas as divagações que três mentes, distantes no espaço mas não no tempo, podem alimentar serão expostas neste blog. O tudo e o nada servirão de temas para as excentricidades destes loucos!

quarta-feira, setembro 16, 2009

Branco

Ouvir o som repetido do relógio, deixar o sonho com pesar e remorsos, abrir os olhos e voltar a fechá-los. O primeiro inconveniente do dia é acordar. 

Ana costumava arrumar sua roupa à noite, passava as peças e as pendurava em frente à cama, assim não perderia tempo na escolha e poderia deixar os olhos fechados por mais tempo na manhã seguinte. Depois, pensou que o banho para sair era um exagero, poderia tomar à noite antes de dormir e manteria-se limpa o suficiente, afinal dormir não suja ninguém. Nesta época, Ana já havia deixado de comer pela manhã e tomava seu café preto no escritório, comentou uma vez que mais prático e rápido que fazer um lanche é não comer. 

O relógio tocou e foi ignorado. Tocou novamente e novamente, tocou seis vezes novamente quando, faltando exatos dez minutos para perder a hora, Ana levantou. Enfiou- se na roupa, passou um pente pelo cabelo, fez um rabo de cavalo, jogou  água no rosto, escovou os dentes, sorriu e sentiu-se boba. Estava atrasada. 

Dava os passos mais largos que podia, por vezes corria, bufava, balbuciava palavras incompreensíveis, xingava em pensamento todos que cruzavam seu caminho. Porque andam tão devagar? Desgosto. Incluindo a ponte, o trajeto até o trabalho costumava levar vinte minutos e sempre, como um ritual, Ana  satisfazia-se examinando o transito congestionado ao seu redor. 

Estava satisfeita também desta vez até lembrar que atrasara-se novamente e que não havia tempo. Cruzou a porta do prédio, esgueirando-se entre os que passavam, viu o elevador fechando.

- Sobe! Sobe!!
O grito ecoou pelo saguão, a voz sozinha e sem ouvintes, apenas os olhos permaneciam, parados sobre ela em grade questionamento. Dois minutos, optou pela escada. Oito andares, um após o outro com respiração ofegante e brotinhos de suor na testa. O café estava em seu caminho, figuras rodeavam os copos descartáveis impedindo a passagem. Esperava? Não esperou, andou passadas duras até a cadeira e despencou. 

- Está atrasada! 
 O dia transcorreu, o dia transcorria alheio às objeções. Ora lento e fatigante, ora apressado e cansativo. Seu horário havia terminado e encontrava-se lá, mesma cadeira, mesa repleta de papéis. Cercada por paredes conjecturou se havia ou não sol por aquelas horas. 

- Será que ainda tem sol?

Não houve resposta, a voz ecoou. Será que ainda tem sol? Será que ainda tem sol? Não entendia porque escreviam tanto, porque haveria de ter tantos papéis com tantas letras e entendia menos ainda porque caiam sobre sua mesa. Suspirou. Guardou-os todos – os papéis – e fortemente decidida desligou o monitor para ir embora. 

A escuridão fazia dos prédios árvores decoradas, luzinhas cintilavam longe e perto. Para cada luz, quantas pessoas? Seus passos faziam um toc toc desconcertante, na manhã não se notava som além do burburinho típico, mas agora toc, toc, toc. Passos a esmo.  E mesmo passo após passo era a cidade que girava ao seu redor, frenética e descompassadamente. 

Debruçou-se sobre a parapeito da ponte, o frio entrou dentro dela junto ao ar úmido. Em baixo mais luzes. Ouvira, uns dias atrás, que quando parece não haver solução é preciso que se veja o mundo de outro ângulo. Fazia sentido, fazia todo o sentido. Subiu no parapeito, alto, viu pessoas tão pequenas e imaginou sentimentozinhos passeando sobre seus pés.

Um passo, outro passo, um passo... 

O medo fazia tremer, a novidade a fazia brilhar. 

Um passo, outro passo, o ar.

Branco.

Dizem que a vida toda passa diante dos olhos um segundo antes da morte, não é verdade. Diante dos olhos só resta branco. Imaculado, infinito e para sempre. 


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Viajar não é preciso!



Não se pode ir à São Petersburgo, a cidade não está lá. Não podemos correr o rico de desembarcar em um dia de sol e encontrar o Neva resplandescente de luz. Seria bem perigoso ter diante dos olhos a arquitetura concreta, o verde das praças e as roupas tão comuns.

As construções são vazias, são tangíveis e imponentes, trarão a beleza à alma como um raio e o belo de Petersburgo é o estranhamento de existir algo tão estranho. Então, estando lá é não estar. A cidade é, mas não a encontramos em si mesma. Mesmo que sussurrassem mil vozes do passado, de dentro dos palácios, mesmo assim, ainda não encontraríamos a São Petersburgo dentro de Petersburgo.

Digo, aos leitores e para eles. Penso que havendo névoa, manhãs acinzentadas, céu branco à noite, nada mudará. A cidade que foi desenhada à pena vive nas letras e somente nelas. A luz fraca e inebriante, o clima ácido, os sons, tudo está nas letras e a cidade, através delas, penetra na alma e faz um ninho taciturno.

Vivemos São Petersburgo por dentro, ela é interior. Não pode ser encontrada por aí, num local qualquer. Está dentro dos sonhos, naqueles mais densos e nos dias pouco felizes. É o lado sombrio do desejo, o impulso para o abismo, o encontro com o vazio. São Petersburgo é quase um sentimento sinistro, não se pode contrair tal sentimento em pé, frente a estátua de Pedro; ela – a estátua - se esvaneceria nas conjecturas outras que não o espelho da alma.

Para estar em São Petersburgo é preciso dar a mão ao matador de velhinha e contar os passos para a degradação. Contar os passos que levam ao fim trágico, à atmosfera torpe, às sombras sem definição. São Petersburgo se sente e, como todo sentimento, a visão a deturpa. Ver a cidade é deturpá-la com olhos impróprios.

Não vá. Para conhecer São Petersburgo é preciso nunca ter estado lá.

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